Além das noções de engenheiros-sociólogos, atores-redes, processos de simplificação e justaposição o referencial conceitual da teoria do ator rede, em um estudo sobre o desenvolvimento de um projeto de avião militar no Reino Unido (Law; Callon. 1988; 1992), oferece outros conceitos importantes para o estudo da mudança tecnológica sob o modelo de tradução. Com o uso de conceitos como: redes, espaço de negociação, ponto de passagem obrigatória, intermediários, cenário sóciotécnico, e simplificação recíproca é possível compreendermos a forma pela qual ocorre uma evolução conjunta entre o contexto social e o conteúdo tecnocientífico das tecnologias.
Seguindo o pressuposto de que é necessário compreender a interconexão entre social e tecnológico, ou seja, a heterogeneidade dos elementos, para perceber como se dá a inovação tecnológica é proposta a noção de rede. É na rede em que ocorre a definição e distribuição de papeis, sejam eles sociais, políticos, técnicos, burocráticos, que serão desempenhados por objetos que podem ter a forma de pessoas, organizações, maquinas, ou descobertas científicas (Law; Callon. 1988: 285).
No caso do projeto tecnológico do avião militar, é apresentado que atores-rede são mobilizados em redes globais e redes locais. A rede global é caracterizada pelos atores que garantem um grau de autonomia aos gerentes dos projetos, especificamente os atores-rede aqui envolvidos tomam a forma de agentes que garantem um suporte financeiro àqueles que desenvolvem o projeto. Fazendo isto estes não tomam conhecimento dos detalhes do projeto e tampouco se envolvem no seu desenvolvimento, em troca desta relativa autonomia os atores da rede global requerem que os atores da rede local prestem contas periódicas e entreguem o projeto dentro do prazo. A rede local se configura como simultaneamente social e técnica. Aos gerentes é garantida, pela rede global, uma relativa autonomia denominada espaço de negociação no qual é constituída a rede local de designers, pesquisadores, times de produção, administradores, componentes técnicos, circuitos, sub-contratados, etc. que garantam o funcionamento do avião militar dentro do prazo e da receita. Visando garantir a manutenção do espaço de negociação, as transações entre a rede global e a rede local são realizadas através dos gerentes do projeto, estes são considerados pontos de passagem obrigatório entre os atores de ambas as redes (Law; Callon. 1988: 289-90), também chamados de intermediários (Law; Callon, 1992: 24-25).
Ao confrontarmos este referencial analítico-conceitual ao desenvolvimento do motor a álcool precisamos identificar quais eram os coletivos sociais (ou atores-rede para sermos fiéis a TAR) que representavam as redes global e local. Quando em 1964 os militares tomaram o poder da nação, apesar das ofensivas contra a liberdade e a democracia, buscavam instituir um projeto de nação e de sociedade, em que do ponto de vista quantitativo havia um esforço em fortalecer a C&T. Deu-se ênfase considerável ao aperfeiçoamento de submarinos, aeronaves, mísseis, e na área energética apoiou-se a tecnologia nuclear. Demonstrando uma crescente preocupação com o desenvolvimento e aprimoramento das estruturas científico-tecnológicas nacionais propondo ainda a criação do Primeiro Plano Nacional de Desenvolvimento que enfatizou “a importância de melhorar o desemenho autoctone na geração tecnológica” (Motoyama, Queiroz, & Vargas, 2004: 331). Considerando-se o governo militar um ator-rede composto de instituições científicas, tecnológicas, militares, governamentais, com interesses que perpassavam o desenvolvimento do país, a superação do primeiro choque do petroleo e a conseqüênte independência energética é admisível considerá-lo enquanto uma rede global responsável por dar suporte logistico e financeiro para o desenvolvimento do motor a álcool, um ator político e burocrático.
Ao que se refere a Rede-local, é possivel creditar o Centro Técnico da Aeronaútica (CTA), atualmente chamado “Comando-Geral de Tecnologia Aeroespacial”, enquanto principal porta-voz dos atores-rede mobilizados para o desenvolvimento do artefato chamado motor a álcool. Foi dentro dos laboratórios do CTA onde foram conduzidos os estudos visando a adaptação dos motores a gasolina para combustão a álcool e também onde o foram fabricados os protótipos do motor movido exclusivamente a álcool (Vargas, 1994: 363). Esta rede-local foi composta basicamente de engenheiros e técnicos do CTA e os seus conhecimentos teóricos, além dos interesses da industria automobilista que eram supervisionados pela Secretaria de Tecnologia Industrial (STI), bancadas de testes, protótipos, administradores responsáveis por produzir o motor movido a álcool e torná-lo aceitável para a população. Três eventos marcam esta última função do rede-local. Em 1976 foi realizada uma viagem onde três veículos percorreram 8.000km do interior do Brasil movidos exclusivamente a álcool; durante 1979, quando haviam 4.624 veículos rodando a álcool no Brasil, foi constituída uma frota teste de 3.120 veiculos movidos a álcool que foram vendidos a empresas estatais e agências governamentais; e devido a proliferação de ‘retíficas de fundo de quintal’ que realizavam a conversão dos motores a gasolina para álcool, por volta de 1983 foi criado um sistema de controle de desempenho dos motores a álcool, dirigida pela STI e composta por 15 Centros de Apoio Técnico (CAT’s) dos quais o CTA era o mais importante (Santos, 1993: 125-9). Como afirma Ferreira (2003: 100), é preciso “convencer os potenciais usuários que motores movidos a álcool, além de funcionar nas bancadas dos laboratórios, seriam capazes de impulsionar automóveis a grandes distâncias e/ou nas mais variadas condições de solo”.
O espaço de negociação entre as duas redes foi caracterizado, principalmente pela autonomia dada ao CTA pelo governo federal. A este centro cabia as funções de num primeiro momento realizarem estudos que possibilitassem a adaptação dos motores a gasolina para o uso de álcool puro e depois para a produção do motor movido a álcool. Isto significa que seria da responsabilidade do CTA: estabelecer taxas de regulagem dos motores devido a octagem diferenciada entre o álcool e a gasolina, de calibragem do carburador, desenvolver mecanismos de pré-aquecimento do combustível para os dias frios, reduzir o consumo de álcool por litro, e a “descoberta” de materias não corrosivos ao álcool. Ou seja, o álcool precisava ser aliado ao motor de combustão interna e para isso o CTA precisava ser capaz de representar os interesses do álcool. De parte do governo havia a necessidade de “garantir a produção e a distribuição do etanol em quantidades suficientes” (Ferreira, 2003: 108) para que o motor de todos os carros a álcool rodando no país pudessem permanecer associados a rede sociotécnica da mesma forma que o espaço de negociação iria sendo mantido. Imaginem o que aconteceria se os engenheiros do CTA não conseguissem representar as qualidades calorificas do álcool e este se tornasse desobediente quando estivesse dentro do motor de combustão interna. Como o laboratório poderia continuar falando em nome do motor a álcool se ele não estabilizasse as identidades de seus representados?
Tornando-se um ponto de passagem obrigatório entre os recursos e interesses do governo federal e a rede-local de desenvolvimento do motor a álcool o CTA assumiu a tarefa de falar em nome do motor, das suas características, controlar a ação das retíficas, convencer a população brasileira da viabilidade do motor além de reunir em torno de sí aqueles que tinham interesse no motor. Neste processo há uma simplificação recíproca, ou seja, mesmo que a rede global seja constituída de atores cujas práticas envolvem diversos procedimentos sociais e técnicos, para a rede local ela representa uma ator-rede responsável por garantir o financiamento e suporte da inovação, da mesma forma para a rede global o emaranhado de designers, procedimentos técnicos, corte de despesas, recursos humanos, fornecedores de matéria prima, chapas de aço, etc. são simplificados em um atore-rede – a rede local – responsável por fazer a inovação funcionar. Desta forma, o processo de simplificação recíproca não só define constantemente as características das redes, mas a sua constituição, o projeto tecnológico e a identidade/interesses dos atores envolvidos, como o departamento de Tesouro britânico foi um ator que foi reduzido a função de prover fundos ao projeto eliminando todas as disputas internas sobre formas de financiamento, prioridades, eliminando os procedimentos burocráticos, etc. (Law; Callon, 1992: 24-25).
De forma semelhante podemos considerar que para o governo federal não era importante compreender e saber solucionar os problemas de corrosão dos materiais utilizados no motor a álcool, conhecer o tamanho médio de um motor de combustão interna, os atores da rede global não precisavam conhecer a termodinâmica ou mesmo ligar para os fornecedores de peças automotivas quando estas estavam chegando aos laboratórios do CTA com características diferentes das solicitadas. Por meio do processo de simplificação e justaposição a rede-global se comunicava com os porta-vozes do CTA, aqueles que falavam em nome do motor, da equipe, dos instrumentos. Técnicas, ferramentas, ferrugem, calor estavam justapostos e simplificados. E por outro lado não era do CTA a competência de garantir o fluxo de recursos financeiros, compreender a dinâmica de funcionamento da balança comercial tampouco negociar com os usineiros. O processo de tradução é de extrema importância quando observamos que o motor a álcool deixa de ser uma ficção de um grupo de engenheiros e começa a rodar pelo território brasileiro.
No momento de proposição de uma determinada tecnologia, como no caso de um projeto encomendado ou de uma tecnologia planejada, é observada a existência de um cenário sóciotécnico. Um cenário sóciotécnico consiste em uma proposta, em expectativas, que ao mesmo tempo diz respeito às características técnicas e a uma teoria sobre como o contexto social estará configurado tanto, politicamente, socialmente, economicamente, etc. em um espaço de tempo no futuro. No caso do avião militar britânico foi-se proposto um artefato sóciotécnico, cujas especificações sobre tamanho, capacidade, design refletiam noções sobre o poder, intenções e capacidades de atores nacionais e internacionais relevantes, requerendo um avião que combinasse ataque técnico e capacidade de reconhecimento tanto para a Europa quanto para territórios à leste de Suez. Ao mesmo tempo o avião precisava ter mecanismos de pouso e decolagem em áreas reduzidas, grande autonomia de vôo, radares e dispositivos de bombardeio específicos que eram compatíveis com a forma de organização política, burocrática e organizacional projetada para os anos vindouros. É, portanto, uma sugestão de como a rede social e técnica estará configurada para o momento da inovação tecnológica. O cenário sóciotécnico, desta maneira, não é baseado em uma distinção a priori entre seres humanos e máquinas (Law; Callon. 1988: 287).
No caso do motor a álcool podemos confrontar encontrar contexto e conteúdo na Instituição do Programa Nacional do Álcool. No decreto 76.593, de 14 de novembro de 1975 já se estabelecia que a produção de álcool deveria ser feita em um contexto em que haveria grande produtividade agrícola, modernização e ampliação de destilarias, promoção de eqüidade econômica regionais, sistema de transporte em expansão, redução do consumo dos derivados de petróleo e etc. Em outras palavras, o que se estava propondo era um cenário sociotécnico em que haveriam mudanças técnicas e sociais. Mesmo não sendo um dos itens propostos pelo decreto citado o desenvolvimento de uma tecnologia em que é possível a utilização do álcool carburante é implícita a proposta. Que outra proposta promoveria a substituição dos combustíveis derivados de petróleo, proporcionaria independência energética e solucionaria o problema da sobre-safra do açúcar? Não há possibilidade de estabelecermos um impacto da tecnologia sobre a sociedade ou vice-versa porque a separação em dois momentos não é perceptível.
Ao não estabelecer distinções entre social e técnico o cenário sóciotécnico auxilia a sustentar a proposição de que durante o processo de desenvolvimento de inovações tecnológicas os Engenheiros-Sociólogos constroem atores-redes a partir de elementos heterogêneos, e estes definem papeis tanto sociais quanto técnicos à objetos humanos e não humanos.
Cabe lembrar que, é de fundamental importância a manutenção dos pontos de passagem obrigatórios para o sucesso do projeto, do espaço de negociação, assim como a autonomia da rede local e que esta seja capaz de cumprir com as promessas realizadas aos atores da rede global. Não menos importante é a necessidade de que cenário sóciotécnico seja mantido, que não haja uma constante reconfiguração das redes locais e globais. A partir do momento em que existe uma reconfiguração da rede há um modificação nos interesses dos atores envolvidos, sendo que desta maneira estes precisam ser novamente mobilizados para garantir o desenvolvimento do projeto.
Referências:
FERREIRA, Benedito de Jesus Pinheiro. Pequenas Histórias em Busca de Traduções/Traições do Programa Nacional do Álcool. Tese de Doutorado da COPPE da UFRJ. Rio de Janeiro: 2003.
LAW, John; CALLON, Michel (1988), “Engineering and sociology in a military aircraft project: a network analysis of technical change”, Social Problems, 35 (3).
LAW, John, CALLON, Michel (1992), “The life and death of an aircraft: a network analysis of technical change”, em Wiebe E. Bijker, e John Law (orgs.), Shaping Technology / Building Society: Studies in Sociotechnical Change, Cambridge, MIT Press.
MOTOYAMA, Shozo; QUEIROZ, Francisco de Assis; VARGAS, Milton. 1964-1985: Sob o signo do desenvolvimentismo. In: MOTOYAMA, Shozo (org.), Prelúdio para uma história: Ciência e tecnologia no Brasil. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2004.
SANTOS, Maria Helena de Castro. Política e políticas de uma energia alternativa: o caso do Proálcool. Rio de Janeiro: Notrya, 1993.
VARGAS, Milton (org). História da técnica e da tecnologia no Brasil. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista: Centro Estadual de Educação Tecnológica Paula Souza, 1994.